Deixamos a África

Em 25 de abril de 1974 a Revolução dos Cravos em Portugal, um levante militar contra a ditadura que governava o país há décadas trouxe a democracia e assim também iniciou-se o processo de independência das colônias portuguesas.
A forte influência e patrocínio da China e União Soviética sobre a Frelimo indicava que o futuro próximo de Moçambique seria sob um regime comunista e que os cidadãos não teriam liberdade para viver livremente e conduzir seus negócios. Provavelmente o estado seria soberano e ditador. Meus pais e milhares de outros residentes (portugueses, indianos, chineses) decidiram sair do país. Muitos foram para Portugal, outros para a África do Sul e nós acabamos indo para o Brasil.
Assim, meus pais deixaram para trás 22 anos de trabalho, a nova fábrica de redes de pesca para onde o maquinário ainda nem havia sido transferido e o apartamento recém-adquirido para mais uma vez começar uma nova vida em outro continente. Era o fim do sonho no paraíso tranquilo onde eu havia nascido e crescido.

Fotos : CIMA, a fábrica de redes de pesca, meu pai com seu irmão Jorge e a nossa família pouco após a chegada ao Rio de Janeiro em Dezembro 1975.

The Beatles

Em 1962-63 os Beatles já eram celebridades tendo emplacado consecutivos primeiros lugares nos hit parades britânicos com músicas como "Please, please me", "From me to you", "She loves you" e "I want to hold your hand". No periodo 1964-66 o grupo tornou-se sucesso universal ao se consagrar nos Estados Unidos da América, maior mercado consumidor do mundo. E foi sobre esse pano de fundo beatlemaníaco que eu entrei na Waterford School em setembro 1966.
Conhecíamos todas as músicas e letras do quarteto. Às 8 da noite dos domingos ouvíamos religiosamente o Your LM Hit Parade que apesar de ser transmitida da estação do Rádio Clube de Moçambique em Lourenço Marques, era apresentado em inglês por David Davies que sempre terminava o programa com "Now this is David Davies bidding you adios, wishing you all the best of luck and to you and to you and especially to you, vaya con Dios". E foi assim que escutamos os lançamentos de Revolver e Rubber Soul, grandes marcos da música pop.
Um dia em 1967 o meu pai foi para Joanesburgo a negócios e voltou com o que eu acabaria achando um presentão : era o último disco dos Beatles, o LP Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band uma obra completa com direito a orquestra. Era pura mágica, nunca havia ouvido nada igual.

Waterford School

Waterford School era um colégio interno na melhor linha de educação inglesa localizado em Mbabane, Suazilândia, então um pequeno protetorado inglês enclausurado entre Moçambique e a República da África do Sul. Para entender como este instituto educacional entrou na minha vida (entrei em setembro de 1966), é preciso voltar um pouco na história.
Moçambique era uma província portuguesa há séculos, desde sua descoberta por Vasco da Gama em 1498. No início da década de 1960 as primeiras colônias africanas (Tanzânia e Quênia) ganharam sua independência da Inglaterra e não tardou para que as províncias portuguesas na África quisessem seguir o mesmo rumo. Mas longe dali o regime do ditador Salazar em Portugal não tinha ouvidos para essas questões.
Formou-se um movimento pela independência chamado Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) com sede em Dar-es-Salaam, capital da Tanzânia, país vizinho e simpatizante à causa. Por vários motivos, os líderes da Frelimo estavam convencidos que a luta pela independência teria que ser armada e assim iniciou-se uma longa guerra no norte do país que chegou a engajar mais de 7.000 guerrilheiros financiados pela China e pela União Soviética e 60.000 homens do exército português, a "tropa" como era conhecida.
O tempo de serviço no exército era de 4 anos e meio e o número de soldados mortos era substancial. E foi para evitar o recrutamento pelo exército português que meus pais me colocaram para estudar fora do país e assim fui parar em Waterford, a cerca de 4 horas de carro de LM e perto de Oshoek, posto de fronteira entre a Suazilânida e a África do Sul.
Junto com meia dúzia de outros moçambicanos, estudei lá dos 13 aos 17 anos. Foi uma época maravilhosa como viria a reconhecer pelo resto da minha vida. Apesar da disciplina rígida, a rotina variada e as sólidas bases da educação inglesa ofereciam um excelente equilíbrio entre a liberdade e os limites que a adolescência pediam.
O colégio era localizado perto do topo de uma pequena montanha a uns 7 km da capital Mbabane e havia sido fundado como uma iniciativa arrojada numa época em que o apartheid era lei na vizinha Áfica do Sul. Brancos, mulatos, asiáticos e negros não se deveriam misturar. Era lei. E sujeito a prisão.
Em Waterford, éramos acordados às 06.00, obrigados a tomar uma chuveirada e depois íamos para o breakfast. Em seguida, havia sempre um morning assembly onde se anunciavam eventos e notícias. Depois tinhamos 5 aulas, todas com 40 minutos de duração. Almoço, pequeno descanso e de tarde aulas práticas no laboratório, atividades esportivas (futebol, cricket, hóquei de campo ou atletismo), jardinagem ou, em caso de chuva, ajuda na biblioteca.
Todos os alunos tinham tarefas semanais : varrer o dormitório ou as salas de aula, colocar pratos e talheres nas mesas, limpar o refeitório. Às 5 da tarde dos domingos todos éramos obrigados a escrever uma carta para os pais, nosso meio de manter comunicação com a família, já que ficávamos distantes do mundo externo por periodos de 3 meses e o único telefone disponível funcionava literalmente a manivela.
Com esta fórmula simples e tradicional e bons professores, este colégio conseguiu prover aos seus alunos uma educação excelente. De lá saíram ótimos alunos não só academicamente como também seres humanos honestos, responsáveis, companheiros e íntegros. O ambiente no colégio era muito bom e acredito que a maioria dos alunos tenham carregado durante suas vidas maravilhosas recordações desse tempo.

Fotos : Phoenix, o símbolo de Waterford, mapa da Suazilândia, alunos na foto anual de 1967, primeiro dia na escola (Xico Meirelles, Mario Suakay, eu e David Mun), com minha avó Rose numa das salas de aula e o cricket team de 1970.

Gastronomia laurentina

Laurentino era o nome dado aos nascidos em LM e a gastronomia laurentina era baseada numa autêntica cozinha portuguesa tropicalizada com ingredientes locais.
Tínhamos o maravilhoso frango à cafreal assado com alho, limão e piri-piri, camarões grelhados do próprio Restaurante Piri-piri, arrufadas da confeitaria perto de casa, pregos, refrigerante Tombazana, sorvete da Cooperativa, pastéis de nata da Pastelaria Princesa, castanhas de cajú assadas pelas mamanas, bife com molho de mostarda da Cervejaria Nacional, sanduíches de carne assada do Scala, comida chinesa, bebinca dos que vieram de Goa, chamuças dos indianos e os incrivelmente perfeitos rissóis de camarão da minha madrinha Guida. Tudo era simplesmente simples, delicioso e saudosamente inesquecível.

O caçador de elefantes

Após chegar em Moçambique em 1952, meu avô "TJ" tornou-se caçador de elefantes. Ausentava-se durante meses seguidos no meio do mato e não tinha como dar notícias à minha avó que ficava apreensiva e preocupada. Geralmente viajava com o meu tio Sammy ou com algum amigo, contratava guias nativos nas áreas de caça (Maplanguene, Massingir, nas margens do Limpopo) e comia muitas melancias para saciar a sede. E todos os anos tinha que renovar a Licença de Caça e fazer a vistoria das armas.
No mato, tinha que saber caçar todos os tipos de animais pois os de menor porte serviriam de alimento e eram usados para negociar produtos com a população indígena.
Tinha algumas belas armas que eu adorava ver quando era pequeno, algumas de calibre grosso com a Westley Richards 500 de cano duplo e a Jeffery 404 inglesa muito usada na caça a elefantes, uma espingarda Sarasqueta 12 também de cano duplo e a clássica Winchester 22.
Numa das expedições, o amigo de caça Lung Fei foi mordido no pé por uma Mamba negra (Dendroaspis polylepis) , a serpente mais temida do mundo por seu veneno potente e velocidade no ataque, que entrou pela lataria onde passava o pedal do freio. Foi lhe aplicado soro antiofídico mas a viagem de 70 km pelo mato e por estradas precárias até ao hospital mais próximo levaria quase 4 horas e ele não resistiu.

Fotos : TJ na caça, com o filho Sammy, com Lung Fei. Licença de Caça de TJ.

Nossos pais

Tenho uma referência muito forte sobre toda a infância em LM : os valores e princípios que aprendi, ensinados pelos meus pais e pelos pais dos meus amigos, tantos os de descendência portuguesa como os de descendência chinesa. Eles eram honestos, íntegros, educados, trabalhadores e tinham humildade, cortesia e consideração pelos outros. Fora do trabalho, o tempo era dedicado à família e ao lar. Não existiam televisores, computadores, celulares nem roupas de griffe e ninguém fazia cooper, frequentava academias de ginástica ou praticava esportes radicais. Tampouco era necessário ensinar aos filhos que não se jogava lixo na rua.
Essa filosofia e esse modo de vida deixaram como herança filhos com os mesmos princípios morais e éticos. Naquele ambiente não se sabia o que hoje seria a malandragem institucionalizada.
Entre as pessoas que se tornaram nossas amigas, muitas das quais ajudaram-nos de inúmeras formas estão as famílias chinesas Yis, Moys, Muns, Youngs e Suens que tinham lojas em várias partes da cidade e também muitas famílias portuguesas como os Rodrigues da Silva, Abreus, Matos, Meirelles, Serradas e Reis Costas. Tinham em comum os valores que realmente importam na vida : honestidade, integridade e generosidade para ajudar os outros. Agradeço a todos eles pelo exemplo que foram, pela ajuda que nos deram e pelas amizades que nossas famílias cultivaram.

Fotos : Nós quatro, reunidos com famílias chinesas na Matola, os Meirelles.

A "baixa" e os salões de chá

A baixa era o centro da cidade, perto do porto, onde ficava grande parte de um comércio próspero e vibrante. O machimbombo no. 5 que eu pegava em frente de casa descia por um lindo trajeto, passando pelo Palácio do Governo, Hotel Cardoso, Liceu Salazar, Hotel Girassol, o prédio do Rádio Clube, a Praça Mouzinho de Albuquerque que abrigava a Câmara Municipal e a Catedral, o Teatro Gil Vicente e chegava à baixa.
Poderia-se dizer que o núcleo da baixa eram os enormes salões de chá do Scala e do Continental, localizados um defronte ao outro, sempre com suas mesas lotadas de senhoras tomando chá e cavalheiros tomando café expresso acompanhado de um cálice de aguardente. Serviam-se torradas grossas com manteiga e pastéis de nata absolutamente deliciosos.
Anexo ao Scala ficava o Cinema e logo depois o edifício dos Correios onde a grande maioria dos empresários e comerciantes tinham a sua caixa postal.
No meio deste movimentado comércio havia a grande loja de departamentos John Orr´s com suas enormes vitrines, a Casa Coimbra que vendia tecidos e dezenas de lojas pertencentes a portugueses, indianos e chineses. Um pouco mais afastada ficava a Cooperativa de Criadores de Gado que servia sorvetes deliciosos, milk-shakes e queijos frescos.

Fotos : Pastelaria Continental, Cinema Scala e a baixa.

Carros da época

Aqui vão algumas fotos dos carros que a nossa família teve na época. O Nash Rambler americano do meu avô cujas portas eram pesadíssimas. Naquele tempo os carros eram fabricados com metal de verdade ! Essa empresa mais tarde tornou-se a American Motors Corporation que viria a ser adquirida pela Chrysler Corporation em 1987.
O Morris Minor preto dos meus pais da British Motor Corporation, mesma montadora que produziria o famoso Mini tinha um "pisca-pisca" que saía das laterais como uma asinha.
E aqui está o Jaguar branco que o meu pai comprou na África do Sul (sem avisar ninguém) equipado com carburador duplo e que nenhum mecânico em LM sabia "afinar". Minha mãe quase ficou doida porque não havia peças de reposição na África e elas tinham que ser encomendadas da Inglaterra !!
Por último, o potente BMW 2002 azul do meu pai, que ficou conosco durante muitos anos e foi nosso último carro antes de sairmos de Moçambique em 1974.

Fotos : Nash, Morris, Jaguar, BMW.

Estudando no Liceu

Após terminar o ensino primário, os alunos que quisessem frequentar os liceus, colégios públicos de ensino médio, tinham que enfrentar provas escritas num enorme salão junto com mil outros candidatos e uma prova oral individual, encarando uma banca de três professores. Isso aos 10 anos de idade ! Eu fui admitido para o Liceu Salazar, um imponente conjunto de edifícios localizado a umas 12 quadras de onde agora morávamos do lado da Esquadra da Polícia no final da Rua Antonio Enes. Como grande parte dos alunos, ia e voltava de bicicleta todos os dias.
Aos sábados tínhamos Mocidade Portuguesa onde todos os alunos eram obrigados a marchar e fazer exercícios de formação com o uniforme de camisa verde, boina e short cáqui. Era um tipo de exército juvenil da ditadura portuguesa.
Frequentei o Liceu Salazar de Setembro 1963 a Julho 1965 quando terminei o 2o. ano.
Praticamente do lado do colégio ficava o Museu Álvaro de Castro que durante anos havia sido administrado pelo próprio liceu e que tinha um lindo acervo de animais selvagens. De vez em quando ia lá ver os elefantes e outros bichos da savana africana.
Lembro bem que num sábado de manhã (23 de novembro de 1963) ao chegar para a Mocidade, havia um grande grupo de alunos atrás do carro de um dos professores espiando a manchete do jornal Notícias. O presidente dos Estados Unidos da América, John Fitzgerald Kennedy, havia sido assassinado a tiros em Dallas, Texas. O mundo ficou perplexo. Kennedy era uma figura universalmente admirada.

Fotos : Liceu Salazar, uniforme da Mocidade, Museu Álvaro de Castro e JFK.

Nascido em LM

Nasci em "LM", como era então conhecida a cidade de Lourenço Marques (hoje Maputo), capital da província ultramarina portuguesa de Moçambique, em 12 de julho de 1953 por volta da uma hora e trinta minutos numa pequena clínica na Rua Pinheiro Chagas. Meus pais haviam chegado a esta bela cidade portuária em 1952 num navio da Dutch SS Lines vindo de Hong Kong, fugindo da repressão e violência comunista da China pós-guerra quando os nacionalistas já haviam sido derrotados e ninguém sabia como ia ser o futuro.
Nos primeiros anos de vida lembro que morava na enorme casa que meus avós haviam construído numa rua transversal à Av. Massano de Amorim, bem próximo ao magnífico Hotel Polana. Depois mudamos para um apartamento no "rés-do-chão" de um pequeno edifício da Rua Aires D´Ornellas não muito longe dali.
Como a minha mãe trabalhava, a partir dos 3 anos fui colocado no Abrigo dos Pequeninos, uma creche rigidamente administrada por irmãs católicas. Em seguida frequentei a Escola Rebelo da Silva (Rua 24 de julho) do 1o. ao 4o. ano do ensino primário cujo diretor era o temido Sr.Benjamin. No intervalo das aulas, todos tomávamos chocoleite fabricado pela cooperativa de leite e depois usávamos as tampinhas de alumínio para brincar de discos voadores.
Ia e voltava a pé da escola acompanhado da minha bábá Rebeca (que me chamava de "meu patrão") e do meu cachorro Rufus, um belíssimo cocker spaniel que recebemos de presente de um amigo da Rodésia.
Durante esses quatro anos minha professora foi a Da. Gabriela Knopfli, pequena, magra e brava senhora portuguesa que não hesitava em usar a "régua", uma pequena tábua de madeira livremente utilizada para bater nas mãos dos alunos que não obtinham aproveitamento satisfatório, quaisquer que fossem os motivos. Apesar desse método que na época era até bem aceito pela sociedade, Da. Gabriela proporcionou excelente educação aos seus alunos e a grande maioria passou sem maiores dificuldades pelas provas de admissão aos dois principais liceus da cidade, o Liceu Salazar e o Liceu Antonio Enes.
A vida em LM era tranquila e as brincadeiras preferidas dos 6 aos 10 anos eram corridas com os pequenos carrinhos (Dinky Toys) nas calçadas, paulito com dois pedaços de cabo de vassoura cortados ou ainda berlindes (bola de gude) num jogo com três covinhas. Aos sábados, montava a cavalo no Clube Hipico perto do Jardim Zoológico.
Tínhamos uma vida sossegada, morando num pequeno paraíso da costa oriental da África. Foi muito bom ter passado a infância nesse ambiente de paz.

Fotos : Hotel Polana, eu com Rebeca, aulas de equitação com Da.Maria, na casa dos meus avós, a Escola Rebelo da Silva e a nossa família na praia da Costa do Sol em LM.